Portal Brasileiro de Cinema  Cinema Marginal ?

Cinema Marginal ?

Andrea Tonacci, entrevistado por Eugênio Puppo e Vera Haddad

Filmava-se como era possível, o nome, o rótulo "marginal" veio depois. Tentou ser pejorativo, queria atingir mais as pessoas que os filmes, e hoje tornou-se coerente com a postura da época, declaradamente libertária. Se quisesse valorizar, com 20 e poucos anos, diria que a vida da gente era bastante marginal, no sentido de que se precisássemos passar a mão em alguma coisa para fazer o filme, a gente passava. O único compromisso era com a liberdade de pensar, de questionar. (...) Hoje, piratear é um direito, um dever para a sobrevivência da memória, da saúde, da segurança (...). Rodamos Blá, Blá, Blá no meio da ditadura, saindo com armas de brinquedo no meio da rua. Loucura? risco? tudo isso, não importa ... marginal nessa atitude de fazer o filme de qualquer maneira, de sobreviver, de falar de qualquer maneira. Agora, quanto aos filmes em si, não vejo nada neles que possa classificar meu trabalho como marginal. Hoje, o nome é até conveniente, porque valoriza uma postura de consciência independente, menos oportunista e conivente. Não era cinema marginal, era cinema marginalizado. Agora tudo bem. Vocês estão montando uma mostra desse cinema, mas naquele momento os filmes não correspondiam mesmo às exigências da censura e aos compromissos do mercado. Mas hoje, para quem está começando a pensar (cinematograficamente), é muito mais difícil. Hoje está quase tudo dominado.

Linguagem

A linguagem, é tão séria essa coisa de linguagem (...) a linguagem é uma coisa inerente à gente, ao ser humano, ao estar vivo. Ela é independente até da tua vontade de se expressar; teu corpo já expressa, teu ser já é a expressão de alguma coisa, da tua humanidade (...) A tua forma de estar presente é a tua linguagem. Então, eu estou muito mais ligado a uma forma de vida que a uma profissão, onde os filmes, vamos dizer assim, são o instrumento para tentar expressar e transmitir o encontro com um determinado momento de vida. Eu acho que transformar o potencial revolucionário, transformador, desta linguagem, e reduzi-la a um método de fazer produtos para um mercado é uma tragédia para o conhecimento, um suicídio para a vitalidade da cultura, da identidade. A não-utilização e a perda do potencial da linguagem, transformada em simples instrumento para formatação de produtos para o mercado, seria como ter uma Ferrari para andar no trânsito de São Paulo – parado no sinal, pronto pra explodir, sem ir a lugar nenhum. (...) acelerando o sonho numa realidade de impotência e desperdício. A sensação que eu tenho quando saio é que está perdido o sentido de responsabilidade do que significa de fato essa linguagem como elemento vivo, como elemento de humanidade e transformação no cotidiano das pessoas (...) só usada para a dominação, para a manipulação e venda do que for, (...) e agora com a tecnologia que traz tudo para o imediato, o simultâneo, o on-line, a velocidade virtual elimina a perspectiva de tempo e de espaço, reduzindo a sensação de vida ao momento; e você perde a dimensão do que aquilo poderia ser. O Humanismo já era, e ser é serviço prestado como homem-objeto.

Fazer cinema

Eu tenho impressão que o cinema, pelo menos parte desse cinema, é feito por pessoas que têm mais uma ansiedade de questionamento, de conhecimento, do que o desejo de uma inserção como profissionais no mercado. Isto é uma conseqüência. Tanto faz o que façam: a fotografia, a montagem, a direção, o roteiro; (...) Para que você está botando aquilo no mundo? Pra que você está fazendo aquilo? Isso não tem nada a ver com a profissão, o conteúdo tem a ver com o fato de pensar livremente o mundo, a representação. O cinema impregna a realidade porque é linguagem, é a materialização formal da estrutura narrativa que o pensamento nos apresenta quando atentamos ao processo das imagens mentais. Produzir imagens que representem o mundo é o mesmo que imaginar o mundo. Criar o mundo é revelar-lhe o sentido, pois tudo já esta aí, é ensinar a ver, pensar – mas num filme nem sempre tem cinema, e o uso da linguagem para induzir a uma determinada reação é atentado à liberdade individual.

(...) Eu diria que a entrada no universo indígena, de minha parte, foi uma busca, talvez, na fantasia de que, através do olhar do outro, uma outra visão fosse possível. Mas é só outra história, outra faceta da mesma busca. Na verdade, funciona como espelho. É uma outra conformação, uma mesma humanidade condicionada diferentemente para as mesmas coisas. É gente absolutamente igual à gente. Bom caráter, mau caráter, inteligente, esperto, talentoso, um mais, outro menos (...) a única coisa que eu encontrei, e que de alguma maneira me remete a uma diferença, foi o nosso condicionamento biológico. Porque eu vivo num universo que me condicionou à linha reta, à superfície plana, à cor única, ao som uniforme, a uma série de ferramentas com que interferimos ativamente no mundo. Quem vive lá desde a infância, a única linha reta que viu foi a corda do arco, nunca uma superfície plana, uma mesma cor, constrói em palha, e não por falta de pedra... (...) é como uma "atomização" (fragmentação) visível do universo físico, uma diferenciação o tempo todo (...) A gente aprende a enxergar e ouvir novamente. A sensibilidade humana desenvolve, afina, aumenta. E falo isso porque sei como é chegar aqui na cidade após meses na floresta, perceber a ditadura da desumanização. Eu diria que é fisicamente dolorido, a imagem da morte arquitetada.

(...) No caminho do documentário, eu tenho tentado descobrir a ficção dentro da realidade (...), pela inserção pessoal naquela realidade, pelo meu envolvimento humano com a situação, com algum conhecimento anterior das emoções subjetivas, dos sentimentos das pessoas envolvidos naquela história, (...), então quando vou filmar, gravar, já tenho um tipo de intimidade que vai muito além daquilo que a câmera simplesmente está mostrando.

Não fazer sucata...

Tento editar através dessa forma de estar envolvido (...) porque no fundo, o meu crescimento, desenvolvimento, aprendizado, vai acontecer nessas horas. É nesse momento que eu ponho em movimento um relacionamento que não existia antes. E é dele que eu vivo e passo a conviver; influo ou sou influenciado, quer dizer, ali tem vida. Então, é um pouco assim que eu faço cinema, e acho que aí não tem diferença nenhuma entre documentário e ficção. A experiência humana está em ambos e você vai trabalhar com sentimentos, com valores, seus e dos outros, seja dos atores ou dos personagens do cotidiano, que quando estiverem na tela serão todos personagens para o público. A responsabilidade do sentido, afinal,, depende da sinceridade do teu olhar.

Experiência nessa geração A bomba está armada, e pensando bem já explodiu: a bomba da massa humana, a bomba genética, a bomba atômica, a bomba ecológica, com a crescente contribuição dos mídia moldando religiosamente a ignorância dos homens objetos (...). Eu acho que é por todos os adiamentos que a gente já viveu nestes últimos 30 anos, pela complexidade do que tem sido a vida, no dia-a-dia de cada um de nós, por causa da sobrevivência, (...) que uma aparente apatia atualmente esconde o tsunami da renovação necessária. Da urgência avassaladora de um sentimento e uma ação de mudança de paradigma para a continuidade de uma humanidade possível.

Mercado

Esse país devia valorizar mais sua imagem....(...) não tem nenhum projeto oficial ou particular que olhe para o cinema como fato estratégico, para um sentido de nacionalidade, de identidade. Os únicos que viram isso na época e aproveitaram politicamente a oportunidade para criar uma imagem necessária foram os militares, no ato em que tomaram o poder, quando incentivaram a imagem ideológica e socialmente crítica do cinema. Hoje, seria quase uma questão de segurança nacional e menos de nacionalismo como então. A Índia tem isso, radical! Os EUA nem se fala, é arma! A Europa sabe. Aqui não, aqui autoralmente sonha-se em subservir o mercado internacional, e internamente ser mão-de-obra acéfala da produção internacional. (...) Competir? O nosso mercado externo é o Brasil! Todos vêm para cá, todos querem tomar esse espaço. Do território aos incentivos e aos nossos desejos. E nós querendo ir lá fora botar o filme no mercado do mundo (...) ...invadidos mentalmente e pelos poros, pensa-se no imediatismo, caixa 2 e Oscar...(...) nada mais.

Cinema de indústria

(...) Quanto mais sofisticada for a tecnologia, mais exclusivista será. Mais hegemônico o Sistema. Atualmente, digitalmente pode-se ter a ilusão de estar produzindo independentemente os longas que se quiser. A possibilidade de uma imagem marginal está aí novamente, porque já nasce marginalizada. É um momento de liberdade possível, de criação, de experimentalismo. Mas a exibição está quase toda dominada. Quem decide o que vai ser visto, e fundamentalmente como e quando será visto, por mais mídias que haja, são outros interesses, essencialmente os do capital, raramente para a consciência coletiva e freqüentemente para manipulação coletiva, massificante, global. A catatonia de uma humanidade sampleada.

Interessa que acreditemos na tecnologia como materialidade do sonho, que consumamos equipamento e que moldemos a linguagem à eletrônica, aos efeitos (...). A concentração da produção do equipamento, conteúdo e mercado de exibição nas mãos de alguns grupos mundiais já ocorreu. A filial Brasil precisa de crentes, e na rede. Devemos valorizar todos os esforços de exibição independente, interferente, incômoda, provocadora, marginal.

Existe uma dramaturgia pensada para o plano seqüência?

Pessoalmente não. Haveria se eu imaginasse algo para ter essa forma. Olha, a priori não dá pra dizer: essa cena vai ser um plano seqüência; eu posso dizer "eu não tenho grana, ou tenho que rodar isso hoje, ou tenho só uma lata de filme, ou o ator tem que ir embora,... bem, então vou ensaiar dez vezes e rodar uma", então vira plano seqüência. Ou então, dramaticamente aquilo tem que se justificar. Hoje o plano seqüência vem embutido como possibilidade tecnológica nas câmeras eletrônicas, um pouco como um software já embutido no hardware. A reflexão não antecede a escolha do plano, é a tecnologia que autoriza a irreflexão. Quantas vezes ouve-se os ingênuos ou incautos glorificando o poder fazer qualquer coisa agora. Isto é mentalidade virtual. Fluxo alheio, ausência de conteúdo. Depois não vai além do fazer, quando produzir imagens é muito mais inferir sentidos na realidade do que formatar produtos idealmente pré-vendáveis. Perde-se o sentido de que é a idéia que determina a forma.

Recado para os jovens

Isso está respondido na referência à maneira de estar no mundo, de como viver o que é o cinema. Essas questões: "o que eu quero de fato nesta vida, como estou fazendo isso, para quê, por quê...." exigem constante atenção, resposta e escolha; uma constante pergunta e uma constante resposta; elas não podem estar dividas, então este é o caminho (...). Acredito que hoje já sabemos, consciente e fisicamente, que devemos entender o mundo mais como partes de um processo pensante em acelerada transformação, do que na defesa da rigidez de normas e valores fixos e partidários, como moldava-se o mundo até a década de 50. Subserviência ao conservadorismo mercadológico obscurantista ou à responsabilidade do cinema e da mídia no diálogo necessário para uma transição pacífica. Isto depende da liberdade das novas gerações, para a recriação de um estado de consciência coletivo mais humano que o do projeto tecnodesenvolvimentista atual.